Livro: O Leitor, Bernhard Schlink, Record, 2009,239 páginas
Felizmente antes de assistir ao filme O Leitor, que recentemente rendeu(e de forma merecida) o Oscar de melhor atriz a Kate Winslet, fiquei sabendo que o mesmo era baseado num livro de mesmo nome, como sou chato(haaahaha) procurei ler a obra antes de ver a película, que estranhamente não ficou muito(veja bem não ficou muito) atrás do livro.
O enredo tem como tema o batidissimo holocausto, mas Schlink arrisca neste seu romance aborda-lo de uma forma original e parece consegui-lo com sucesso. Até que ponto somos ou não responsáveis pelas nossas ações, numa situação crítica, sujeitos a ordens que não podem ser desobedecidas? Qual a responsabilidade e qual o papel da geração dos filhos das pessoas que, direta ou indiretamente, sobretudo indiretamente, participaram no Holocausto? O livro é inovador nesse aspecto, trazendo a tona a "vergonha alemã".
Ao abordar a paixão de Hanna Schmitz, que foi guarda do campo de concentração de Auschwitz, e Michael Berg, um jovem estudante de Direito, Schlink propõe um dramático ziguezague temporal: entre a década de 50 e os últimos anos do século XX, são os traumas da história da Alemanha (e da Europa) que regressam através de uma intriga que tem também dimensão de tragédia amorosa.
O livro trata de alguns dilemas morais interessantes, Tenho eu o direito ou o dever de revelar algo sobre uma outra pessoa, que pode reduzir sua pena ou até mesmo salvar sua vida, quando essa pessoa se recusa a fazê-lo ela mesma, por considerar o objeto da revelação vexatório? Tenho eu o direito ou o dever de agir no que presumo ser o melhor interesse da pessoa, quando ela própria acha que seu melhor interesse é preservar o segredo e a privacidade de uma condição que considera vergonhosa? Crimes, como os descritos, podem vir a ser expiados ou perdoados e produzir redenção ou reconciliação? Ou é tarefa das vítimas, e seus herdeiros, garantir que até o último culpado recebe sua justa punição?
As sociedades gostam de imaginar que operam com base em princípios morais, mas isso não é verdade: elas operam com base na "lei.Agora, se a lei prescreve comportamentos que são considerados imorais, o que faz a pessoa simples, que quer apenas desempenhar bem o seu trabalho, que não é intelectual, que não filosofa? Hanna Schmitz, mesmo em seu julgamento, em 1966, ainda está perfeitamente convencida de que seu trabalho era guardar as prisioneiras, evitar que fugissem.Como poderia ela abrir a porta da capela para deixá-las escapar do fogo, sim, mas também da custódia em que se encontravam? Ela participou dos crimes nazistas porque “era o trabalho dela” e ela acreditava ser seu dever fazer o seu trabalho bem feito, porque seus chefes estavam no poder legalmente, tinham a autoridade de lhe dizer o que deveria fazer e tinham o direito de esperar que ela fizesse o que lhe era ordenado.
Hanna, apesar de ser descrita por suas vítimas, ou por aqueles que as representam, como um monstro, não é uma pessoa má, ela é uma pessoa simples, que acha que tem de cumprir com o seu dever e fazer, da melhor forma possível, o que os seus chefes lhe ordenam e esperam dela.Quanta gente não pensa do mesmo jeito, e só não comete crimes, pequenos ou horrendos, porque seus chefes nunca lhes pediram que fizesse algo moralmente errado?
Ao separarmos a lei da moralidade, e afirmarmos que, no mundo sócio-político, vale a lei, não a moralidade, nos curvamos ao cinismo daqueles que afirmam, ao ser flagrados em falcatruas de todo tipo, que seu comportamento ficou dentro dos limites da lei. E não é só de falcatruas financeiras que se trata: afinal de contas, Hanna Schmitz agiu dentro dos ditames da lei e, por causa disso, trezentas mulheres inocentes morreram.
A questão do analfabetismo de uma pessoa adulta, mesmo numa sociedade desenvolvida como a Alemanha da época da Segunda Guerra, embora central para a trama, parece ocupar um lugar claramente secundário diante dessas outras grandes questões.
Não sou um expert em literatura alemã(para falar a verdade, em literatura nenhuma), mas parece-me que depois de O Perfume(Suskind, ja resenhado aqui no blog), esse foi o grande livro alemão dos últimos tempos.
Termino com a reflexão que basicamente fecha o livro: Quando, em seu último encontro, Michael pergunta a Hanna se ela tem pensado muito sobre o passado, ela lhe pergunta: sobre o nosso passado? Ele diz que não: sobre o passado em geral. Ela lhe responde: "Não importa o que eu penso. Não importa o que eu sinto. Os mortos continuam mortos”.Isso é verdade: os mortos continuam mortos. Mas o resto não é verdade: o que pensamos e o que sentimos importa. E lendo livros como esse, somos forçados a pensar e a sentir. E se pensarmos e sentirmos, provavelmente corremos menor risco de cometer erros morais e mesmo crimes por estarmos vivendo e agindo em piloto automático.